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Elise Dawson
14 mars 2005

O catálogo de animais reais e fantasiosos.

 

O bestiário é um tipo de literatura descritiva que traz um compêndio de bestas. Embora originário do Mundo Antigo, se tornou muito popular durante a Idade Média, e é apresentado na forma de volumes ilustrados retratando animais, autênticos ou imaginários, e até plantas ou motivos orgânicos da natureza. A história natural e a ilustração de cada criatura são geralmente acompanhadas de lições moralizantes, fundamentadas na crença de que o mundo é literalmente a criação de Deus e que, portanto, nele cada ser vivo tem seu papel. Quando a referência é específica para rochas e ervas, os textos procuram ressaltar suas propriedades e virtudes. Para a arte e a literatura cristã ocidental, os bestiários se tornaram uma importante referência de linguagem simbólica.

As populações medievais eram, evidentemente, dependentes dos animais selvagens ou domésticos para a sua sobrevivência, e assim tinham um patente interesse neles. Não bastasse isso, um aspecto espiritual e místico foi sendo creditado a eles nesta época de intensidade religiosa na Europa, Oriente Médio e norte da África, até pelo motivo de várias das religiões presentes na região serem relacionadas e compartilharem textos sagrados em comum, como a Bíblia Hebraica, nos quais surgem muitas referências à bestas.

Ao contemplar as criaturas de Deus, a mente medieval, particularmente a cristã ocidental, buscava interpretações alegóricas e relacionamentos simbólicos e não causais, de modo que acreditavam que elas, tanto reais como imaginárias, selvagens ou domésticas, tinham um significado além de si mesmas. Esta idéia foi edificada em parte por passagens bíblicas como Jó 12:7-10 (7. No entanto, questiona os animais, e eles te ensinarão; pergunta às aves do céu, e elas de esclarecerão; 8. ou fala com a própria terra, e ela te ministrará; até os peixes do mar te instruirão. 9. Qual dentre todos eles não tem conhecimento que a mão de Yahweh, o SENHOR, criou tudo o que há? 10. Na sua mão repousa a vida de todo ser vivo, e o espírito de todo gênero humano.).

Segundo afirmavam, havia um propósito edificante na Criação e nos seres componentes dela, os quais vieram para fornecer instrução moral e ensinar a conduta adequada de vida. Suas características não eram circunstanciais ou acidentais, mas criadas propositalmente por Deus como modelos para reforçar os ensinamentos religiosos. Até mesmo seus nomes significavam algo, e é por isso que há uma ênfase na etimologia na Idade Média. 

Na verdade, não era tão importante que a criatura existisse ou não, uma vez que sua existência apenas teria um propósito didático e redentor. Um exemplo interessante é a árvore Peridéxion, a qual, em sua imagem, além do próprio vegetal, continha pombas em sua copa e um dragão em sua base. Ela foi associada a passagens bíblicas no sentido de que o dragão (o demônio) aguardava que as pombas (os fiéis) se afastassem dos frutos (as ordens divinas, no abrigo da Igreja) para desencaminhá-las.

O primeiro texto conhecido a transformar animais em alegorias religiosas foi o “Physiologus”, uma compilação explicitamente cristã de uma série de lendas com origem nas tradições judaica, indiana e egípcia, acrescida de contribuições gregas dos textos clássicos sobre o mundo natural de Aristóteles, Heródoto e Plínio, escrito em grego em Alexandria no século II ou III dC., contendo uma interpretação moralizadora. O manuscrito foi traduzido para a maioria das principais línguas da Europa e da Ásia Ocidental, e muitas variações na redação apareceram ao longo dos séculos. Com o passar dos tempos seu conteúdo original, que descrevia somente algumas dezenas de bichos, continuou a acumular mais bestas e interpretações morais adicionais. 

Em torno do século VII, o arcebispo Isidoro de Sevilha escreveu o “Etymologiae” para preservar o conhecimento da Antiguidade, uma enciclopédia que inclui uma parte sobre animais derivada de livros de autores clássicos como Plínio, o Velho. Ainda assim, nesta parcela destinada às bestas, não se verifica a lição cristã da mesma maneira que aparece no “Physiologus”, demonstrando o caráter enciclopédico desta obra.

Quando o “Physiologus” combinou com o “Etymologiae” e alguns outros textos, nasceu o que ficou conhecido como bestiário. Este livro das bestas, a exemplo do “Physiologus”, também descreve uma criatura e usa esse relato como base para um ensino alegórico mas, além disso, insere materiais de outras fontes, promovendo uma descrição do mundo como era conhecido.

Estes manuscritos geralmente eram ilustrados, às vezes ricamente, como no Harley Bestiary e no Aberdeen Bestiary. Suas imagens serviram de linguagem visual para o público sem instrução, que conhecia as histórias, provavelmente pelas pregações e sermões, e lembrar-se-ia da doutrina moral simplesmente quando via a besta retratada. 

As figuras não apareciam somente nos bestiários, mas em diversos outros tipos de manuscritos, pintadas em paredes e trabalhadas em mosaicos, em tecidos e tapeçarias, e, é claro, abundantemente em localidades e prédios religiosos (esculpidas em pedra e madeira, em misericórdias - uma pequena estante de madeira na parte de baixo de um assento dobrável em uma igreja, instalado para fornecer um grau de conforto para quem se mantém durante períodos de oração - e em outros móveis decorados). 

As ilustrações geralmente não eram realistas, pois o artista nunca viu um exemplar da besta, mesmo quando não era fabulosa. Então, a título de exemplos, os ilustradores europeus muitas vezes desenhavam o crocodilo como mais semelhante a um cão, o avestruz contendo cascos, a baleia como um grande peixe escalado, e até serpentes com pés e / ou asas. Talvez eles tenham baseado seus desenhos em um animal ainda desconhecido nas descrições registradas disponíveis naquele momento, ou em outras ilustrações e esculturas que havia visto mas que não representavam exatamente os fatos. 

Muitos manuscritos ficaram com imagens bem peculiares e curiosas, devido à simples falta de habilidade do ilustrador, que eventualmente era o monge mais artístico do mosteiro contudo não um verdadeiro artista. Já outras gravuras só podem ser consideradas como obras de arte, com pinturas magníficas em muitas cores e um uso generoso de ouro.

Porém, quando se tratava de animais fabulosos, como o grifo, o unicórnio, o hipocampo, o dragão ou a fênix, ao desenhista não restava alternativa a não ser seguir as narrações ou imagens anteriores. Acreditando na existência de tais criaturas ou que são apenas fruto do imaginário humano, o fato é que algumas delas são mencionadas na Bíblia (como o unicórnio e o dragão), e como esta é reconhecida como a verdadeira Palavra de Deus, qualquer ser que lá esteja certamente deve existir ou ter existido. Além da credulidade religiosa medieval, havia a crença na veracidade dos textos de autoridades antigas como Plínio e Aristóteles, os quais claramente confirmam as bestas e os lugares onde poderiam ser encontradas.

Mas como já escrevi, sendo estes animais imaginários ou não, continuavam adequados como veículos para ensino moral e religioso, mesmo quando se tratavam de criaturas fantásticas pagãs. Tanto é assim que foram retratados em documentos produzidos, inclusive e principalmente, dentro de mosteiros, uma contradição se tivermos em mente que era uma época na qual o cristianismo se tornou hegemônico e substituiu os traços do paganismo.

As lendas pagãs eram adaptáveis a muitos contextos, o que certamente facilitou sua popularidade no mundo medieval. Podemos afirmar que a Idade Média deu continuidade à tradição clássica e pagã, e também as inovou, com os seres adquirindo propósitos de representar ideais cristãos, positivos ou negativos. No final do período, a redefinição destas feras possibilitou que fizessem parte de uma produção cultural que estava sendo edificada no próprio espaço da religião.

Na Idade Média, grande número de bestiários foi escrito em latim, a língua comum de estudiosos e clérigos, embora muitos o foram em línguas vernáculas, principalmente no francês. Normalmente seus autores ou compiladores são desconhecidos, entretanto, na França, vários em versos vernáculos apareceram e, nestes, o autor geralmente nos dá seu nome, como Gervaise, que escreveu seu “Bestiaire” no dialeto normando no início do século XIII, ou Philippe de Thaon, que grafou o seu em anglo-normando.

Os bestiários foram produzidos principalmente na Inglaterra e, dentre os outros lugares onde foram manufaturados se destaca especialmente a França. 

No escopo de classificá-los, estabeleceram-se vários grupos distintos destes livros, ou “famílias”, como ficou conhecido, segundo os manuscritos relacionados e as influências recebidas.

Nos séculos XIII e XIV, surgiram uma série de enciclopédias, redigidas particularmente em latim, por escritores como Jacob van Maerlant, Bartholomeus Anglicus, Konrad von Megenberg, Lambert de Saint-Omer, e Hrabanus Maurus. Esses textos não são bestiários porque, mesmo que contenham algum material correlato, geralmente não usavam alegorias. São obras que têm seções sobre bestas, mas também cobrem toda a gama do conhecimento em categorias como teologia, filosofia, zoologia, astronomia, medicina, cronologia, botânica e geografia. Seus autores copiavam materiais uns dos outros e de expoentes anteriores, como Isidoro de Sevilha, Plínio, Aristóteles, dentre outros. 

No entanto, a moralização animal medieval não foi sempre de conteúdo religioso, como nas fábulas bem conhecidas do antigo escritor grego Esopo e em outros contos envolvendo bichos. Uma das séries mais populares tem a ver com o protagonista Renart, a Raposa, uma figura que certamente não é um exemplo para a vida adequado, já que suas narrativas o mostram como um mentiroso, um ladrão e um assassino, sempre saindo com suas faltas ao final e geralmente com grande custo para os que o rodeiam. As histórias de Renart foram populares nos Países Baixos, Alemanha e França, onde várias versões vernáculas foram produzidas.

Posté par Elise Dawson

 

 

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Commentaires (7)

 

O Physiologus apresenta algumas histórias alegóricas se referindo aos feitos de Jesus Cristo. É o caso do unicórnio, que acaba representando a Encarnação, pois se afirma que apenas poderá ser feito prisioneiro quando estiver repousando no colo de uma virgem pura. Há também o pelicano, que alimenta seus filhotes com seu próprio sangue para que possa transmitir parte de sua vida a eles, virando um símbolo da Salvação.
Por vezes, mais de uma guardam semelhanças entre si nas referências a Cristo, como por exemplo na história da fênix que queima a si mesmo, morrendo, mas que depois de três dias ressurge das cinzas, e na da leoa cujos filhotes são natimortos, mas que ao suspirar sobre eles, os revive no terceiro dia.
Em síntese, o Physiologus procura demonstrar forte valor didático e muitas afinidades com os acontecimentos narrados nos textos da religião cristã.

Posté par Regina Geviewski, 14 mars 2005 à 19:09 | Répondre

 

O Bestiário de Aberdeen, uma compilação de vários livros semelhantes, principalmente o “Physiologus”, e que também inclui capítulos do Gênesis, é considerado um dos melhores. Se trata de um manuscrito belissimamente iluminado (tem pinturas decorativas chamadas iluminuras) e escrito na Inglaterra durante o século XII em latim, incluindo notas, esboços e outras evidências da forma como foi concebido e executado.

Para organizar o gênero, se desenvolveu o conceito de classificação de famílias, segundo obras relacionadas. Montague Rhodes James, um medievalista e escritor britânico, em 1928, dividiu os bestiários em quatro famílias:

A primeira consiste no “Physiologus” mais extratos das “Etymologies” de Isidoro de Sevilla; a segunda inclui os textos desenvolvidos durante o século XII, entre os quais está o Bestiário de Aberdeen; a terceira compreende os bestiários que aparecem no século XIII; e a quarta família é baseada principalmente em “De proprietatibus rerum”, de Bartholomeus Anglicus, a partir do século XV.

Posté par Priscila Ladwig, 14 mars 2005 à 19:37 | Répondre

No Bestiário de Aberdeen, aparece uma criatura denominada yale, com o tamanho de um cavalo, mandíbulas de um javali, rabo de um elefante, e chifres longos e ajustáveis aos seus movimentos. Estes últimos não são fixos, mas móveis, podendo se mover independentemente para qualquer direção, o que ajuda muito nas variações de necessidades de combate. Em gravuras, normalmente é retratado com chifres em direções opostas. Nas batalhas, inicialmente o animal mantém um de seus chifres voltado para trás. Se o da frente for danificado, passará a usar o outro.
Em alguns bestiários, o basilisco é apresentado como inimigo dos yales, os picando nos olhos quando estão dormindo, o que faria com que suas vistas inchassem até explodir.
Aliás o basilisco, descrito como uma serpente com cabeça de galo que nasce quando um ovo de galinha é chocado por um sapo, e que tem a capacidade de matar apenas fixando o seu olhar sobre a presa, também é outra criatura presente em bestiários.

Posté par Renato Villela Filho, 14 mars 2005 à 22:02 | Répondre

 

Os primeiros e verdadeiros bestiários, antologias exaustivas do mundo natural, apareceram na Grécia antiga, e serviam como um meio de catalogar e descrever todos os animais e plantas conhecidos, míticos ou não e, em particular, os que tinham usos curativos ou eram dignos de nota.

No período medieval, quando se tornaram extremamente populares, a religiosidade e as alegorias passaram a incidir nessas descrições, fazendo com que muitas criaturas ganhassem poderes milagrosos ou fossem representadas como símbolos de redenção, salvação e renascimento. A mistura entre fato e ficção se tornou constante, e os relatos genuínos de animais, pássaros, insetos, e plantas da vida real foram listados ao lado de descrições ridículas de animais bizarros e lendários.

Posté par Astrid Steux, 14 mars 2005 à 20:50 | Répondre

 

No período da baixa Idade Média, após o fim das invasões bárbaras, onde uma relativa paz reinou na Europa entre os séculos X e XV, tornou-se uma atividade comum nos monastérios a produção de Bestiários que buscavam retratar toda a animália conhecida, real ou não. Assim sendo, seres mitológicos como unicórnios, fênix e grifos apareciam junto a leões, raposas e gansos.

Um destes seres é o hydrus, descrito como uma serpente do rio Nilo que devora crocodilos de dentro para fora. Segundo consta nos bestiários, quando o hydrus vê um crocodilo de boca aberta, rola na lama para ficar mais escorregadia, entra nele, e passa a consumir suas entranhas até sair pela barriga do animal já morto.

Outro é o monocero, parecido com o unicórnio ou, de acordo com certos livros de bestas, correspondente a ele, retratado em um bestiário do século XIII como tendo o corpo de um cavalo, os pés de um elefante e uma cauda de um veado, além de um chifre no meio da cabeça extremamente comprido e esplendoroso que, de tão afiado, furaria qualquer coisa. Ainda conforme o texto, somente poderia ser capturado morto.

Posté par Celso Schaefer, 14 mars 2005 à 21:43 | Répondre

Cito outros quatro exemplos que me recordei agora.

O parandrus, ou tarandos, uma criatura da Etiópia do tamanho de um boi, tem a cabeça de veado com chifres em ramificação, com cabelos compridos e cascos trançados, que pode mudar sua aparência para se esconder e teria habilidades de mimetismo, camuflando seu corpo no meio. O nome científico da rena, Rangifer tarandus, é derivado do nome tarandos.

A manticora, semelhante à uma quimera, tinha a cabeça de uma pessoa, o corpo de um leão vermelho, a cauda de escorpião, uma voz como um assobio e três fileiras de dentes semelhantes a um pente.

Já o Cinocéfalo, que significa literalmente "cabeça de cão", e para alguns escritores antigos era o nome de uma espécie de macaco com cara de cão nativa da Etiópia, era um ser que sempre dá à luz a gêmeos, um dos quais será sempre amado pela mãe e o outro sempre odiado.

Também há o onocentauro, um parente do centauro, mas que tinha a cabeça e o tronco de um homem e o corpo e as pernas de um burro, e não de um cavalo.

Imagens heráldicas e brasões medievais apresentavam, com freqüência, animais fantásticos existentes em bestiários.

Posté par Adilson Saad, 15 mars 2005 à 20:30 | Répondre

 

O Romance de Renart (Le Roman de Renart), foi escrito entre 1170 e 1250 e é formado por um conjunto de 27 poemas reunidos de modo incoerente ao longo do século XIII, que pertencem a vários autores, na maioria anônimos. Nele se parodia as situações da sociedade cavaleiresca onde as personagens são animais, sendo a mais importante uma raposa. Sua base são as fábulas de Esopo, que foram recolhidas e agrupadas na Idade Média e intituladas Isopetos, da história de Ysengrinus do clérigo flamengo Nivard, onde já se encontra a personagem Reinardus, e de uma longa tradição de histórias de animais.
Renart assume diversas formas:- um ladrão astuto, um malicioso sedutor, com o dom da persuasão pela palavra, ou um demônio hipócrita. Sempre pretende levar a melhor sobre os outros.
A raposa desempenha papel destacado no imaginário popular francês, desde a Idade Média até aos nossos dias, sobretudo na literatura infantil. O termo "renart" atingiu um valor tão grande que chegou a substituir outros termos na língua francesa para designar "raposa".

Posté par Eliane Giaffone, 15 mars 2005 à 19:22 | Répondre

 

 

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